segunda-feira, 24 de abril de 2017

Marco Aurélio Nogueira: Depois das delações, o tempo

É hora de começar a distribuir culpas, penas e responsabilidades. Não se pode perder uma oportunidade destas para limpar parte importante da história da República brasileira.
Pode-se dizer que delação não é prova ou que faz parte do mesmo “golpe” que afastou Dilma Rousseff da Presidência. Pode-se dizer que os Odebrechts deitaram e rolaram como verdadeiros donos do Brasil e agora estão querendo livrar a cara, descarregando tudo nas costas dos políticos. Pode-se dizer o que for, mas não há como fazer de conta que nada acontece de extraordinário.

Com a divulgação das delações dos executivos da Odebrecht, o espanto se combinou com o mal-estar, tamanho foi o buraco que se abriu. Dinheiro sendo distribuído a rodo, a partir de extorsões feitas por pessoas empoleiradas no topo do poder e impulsionadas pela volúpia de empresas que escolheram correr o risco de dilapidar seu patrimônio ético e material.
De uma só penada, empresários poderosos, com enorme cinismo e hipocrisia, emporcalharam a vida política nacional, atando-a a crimes cometidos ao longo de anos, nas barbas de todos, sem perdoar ninguém, da direita à esquerda. Veio à tona o padrão de capitalismo que se forjou por aqui, alimentado por uma mixórdia de laços e anéis entre o público e o privado, indiferente à sorte da população. Chamaram de “campeãs nacionais” essa versão tupiniquim da exploração sem peias das gentes, do poder e das riquezas de um país.
A extensão dos fatos impressiona. Décadas de malfeitos, de invasão do público pelo privado, de degradação da função pública, de sonegação, de manipulação de obras e contratos para fins eleitorais, de enriquecimento à custa do povo. Não foram somente alguns políticos e grandes empresários. Montou-se um circuito diabólico de corruptos e corruptores, que se naturalizou e cresceu com a cumplicidade do sistema e de seus protagonistas, que fingiram não ver o veneno que impregnava a corrente sanguínea da Nação.
É hora de começar a distribuir culpas, penas e responsabilidades. Não se pode perder uma oportunidade destas para limpar parte importante da história da República brasileira. Seria obsceno um “acordão” que zerasse tudo para “salvar a política”. Empresários e políticos que desonraram sua atuação precisam ser enquadrados, com as distinções cabíveis, para que assumam o que houve de escabroso e se desculpem.
Muita pedra terá de ser carregada para se chegar ao fim do processo sem que se jogue fora a criança junto com a água suja do banho. Proteger a democracia, fazer com que prevaleçam seus valores e suas regras, renovando o que precisa ser renovado, enterrando os mortos que nos atormentam e isolando os demagogos, os ilusionistas.
As delações não foram o fim do mundo. Contaram histórias que se conheciam ou de que se ouvia falar. Puseram-nos em frente a um espelho no qual vimos algumas de nossas piores vergonhas. Na melhor das hipóteses, poderão ajudar a que termine um mundo.
Delações são relatos subjetivos de fatos. Quem delata fornece uma versão, uma “narrativa”. Age em interesse próprio. Pode distorcer situações, esquecer detalhes. Delatores mentem. As investigações servem para que se chegue ao máximo possível de verdade, evitando que se puna indevidamente.
É um nó a ser desatado. Sem isso não haverá como dosar penas, estabelecer o que é crime, dolo e má-fé, distinguir propina e doação eleitoral. Para isso será decisiva a inteligência tática e estratégica dos democratas, que ainda estão desarvorados e em busca de um eixo.
Qual será o tempo de reação dos democratas? Que tempo haverá para que se arrume a casa e se façam nela alguns pequenos reparos? Haverá tempo para que os cidadãos entendam o que está a ocorrer e se posicionem com firmeza? Precisamos levar em conta o timing dos processos, mas, paradoxalmente, não temos muito mais tempo a perder.
Nem tudo virá em sintonia com as expectativas dos cidadãos. A Justiça tem seu ritmo e seus procedimentos. Move-se com lentidão. Permanecerá soberana, mesmo que não possa imunizar-se contra eventuais pressões populares. A criação no STF de uma força-tarefa para acelerar os julgamentos da Lava Jato é um sinal de que há sensibilidade na Corte.
Também não se pode descartar a resiliência da classe política. Ela sabe agir corporativamente e se autoproteger, como qualquer corpo vivo. Pode-se torcer para que haja uma “renovação radical” na próxima composição do Congresso Nacional, mas é grande a probabilidade de que muita coisa se reproduza.
A emergência de uma nova elite política vem por etapas e mediante avanços difíceis. Sobretudo quando o sistema político está desajustado, quando a própria sociedade se vê às voltas com transições complicadas que comprometem seus nervos e suas estruturas, quando os partidos não são boas escolas de quadros. Aqui também, portanto, o tempo terá de ser bem considerado, até para não se fabricarem ilusões desnecessárias.
Os riscos inerentes ao processo em curso se alimentam de ilusões deste tipo. Há muita gente à espreita, de oportunistas a protofascistas, interessados em ganhar a massa decepcionada com os políticos e mordida pelos escândalos. Não são idênticos entre si, nem em termos políticos, nem em ideologia. Alguns têm mais substância, proposta e estilo, outros são provocadores baratos. Mas todos oferecem “ordem”, trabalho e “seriedade” ao povo.
Aos bons políticos dispostos a agir na esfera pública estatal caberá produzir uma articulação e apresentar suas postulações juntamente com uma visão do País que merecemos.
A solução do enigma não está no meio, mas num ponto futuro ainda não claramente delineado, para o encontro do qual os democratas deveriam estar trabalhando com afinco e realismo. Seja a opção por uma Constituinte, seja o caminho o das reformas pontuais no curto prazo, teremos de assistir à gestação de um pacto de novo tipo, que envolva a sociedade e todos aqueles com disposição para garimpar democraticamente o novo e recriar o modo de fazer política no País.
*Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política e coordenador do núcleo de estudos e análises internacionais da UNESP

Fonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,depois-das-delacoes-o-tempo,70001747562

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Ricardo Abramovay: Blade Runner é hoje — Os replicantes estão chegando

Os benefícios da inteligência artificial se fazem ver em várias áreas. O mesmo vale, contudo, para as ameaças sopradas pelo turbilhão tecnológico. Entre elas, segundo o autor, estão a autodeterminação das máquinas, o desemprego e o fim da privacidade. A falta de uma agência reguladora global acentua o temor.


“Por muito agarrados que estejamos à vida, até uma serpente hesitaria diante da eternidade”, diz o personagem de José Saramago no início da História do Cerco de Lisboa. Mas a morte, como componente incontornável da vida, pode estar com os dias contados.

Ray Kurzweil, cientista da computação, inventor e futurologista, autor de best-sellers sobre inteligência artificial e saúde, prevê que a vida eterna vá se tornar tecnicamente possível a partir de 2029. Ou seja, em 12 anos.

O prognóstico poderia soar como desvario se Kurzweil não trabalhasse na área de inovação de um dos chefes de fila da pesquisa sobre inteligência artificial, o Google.

Além disso, ele está envolvido em façanhas como o reconhecimento ótico de caracteres e a transmissão direta da linguagem falada para impressoras.

Daí à eternidade não há muito mais que um passo — ao menos é nisso que acreditam os adeptos do transumanismo. O movimento tem se desenvolvido nos últimos 20 anos e procura melhorar o funcionamento do organismo humano por meio da engenharia genética, das tecnologias da informação, da nanotecnologia molecular e da inteligência artificial.

A humanidade, segundo os transumanistas, não é o ápice da evolução. A ciência e a tecnologia podem nos fazer pós-humanos, ampliando nossas capacidades muito além daquilo que um humano atual pode imaginar.

Transcendência ou morte. Eis o lema fundamental do transumanismo. De fato, nossa inteligência pode superar a maioria das atuais limitações biológicas. Nos próximos 20 anos, ciência e tecnologia provocarão em nós e em nossa organização social muito mais mudanças do que as registradas nos últimos 300 anos.

Maquina inteligente

Na base de todas essas transformações está uma diferença crucial entre o progresso técnico contemporâneo e tudo que o precedeu.

Se a Revolução Industrial promoveu a substituição da força animal e, posteriormente, do próprio trabalho humano por máquinas, agora é nossa inteligência que vai sendo trocada por dispositivos eletrônicos cada vez mais potentes.

O poder computacional desses aparatos dobra, em média, a cada dois anos. Vejamos: o sequenciamento genético custava US$ 100 milhões em 2001 (R$ 240,7 milhões, em valores de junho daquele ano) e US$ 10 milhões em 2008 (R$ 16,3 milhões, idem). Hoje, essas informações podem ser obtidas por US$ 1.000 (R$ 3.100). Os seis pequenos retângulos de silício que, em 1958, permitiram ao Vanguard I (o quarto satélite lançado ao espaço e o primeiro alimentado por energia solar) mandar informações à Terra custavam muitos milhares de dólares por watt. Na década de 1970, o preço tinha caído para US$ 100.

Agora, a US$ 0,50, a energia solar já compete com o carvão. A Agência Internacional de Energia Renovável estima que ela baixe a US$ 0,05 ou 0,06 em oito anos.

Os dispositivos eletrônicos, além disso, não se confinam a um setor ou a uma dimensão da vida social; eles se combinam. Todos os objetos com que nos relacionamos se tornam meios de intensificar nossa conexão a redes cada vez mais amplas.

A natureza exponencial (dada pela velocidade do aumento da capacidade computacional) e combinatória das tecnologias atuais faz com que as mudanças sejam incontornáveis e irreversíveis.

Os ganhos reais e potenciais dizem respeito às mais diversas áreas, da geração de energia à produção de bens materiais, da agricultura de precisão aos automóveis autônomos, da prevenção de doenças à criação cultural, da organização urbana às finanças e à circulação de informação.

Ao mesmo tempo, porém, ampliam-se a apreensão e os alertas relativos aos riscos da evolução tecnológica, e eles partem de atores importantes. Alguns não hesitam em comparar esses riscos aos representados pelos artefatos nucleares e pelas mudanças climáticas.

A diferença é que a corrida nuclear e as mudanças climáticas estão enquadradas por algum tipo de acordo e de governança global, mesmo que o resultado dessas iniciativas seja contestável.

Ameaças

Quanto ao avanço da inteligência artificial, não há nenhuma coordenação nem sequer para sinalizar as ameaças — entre as quais destacam-se quatro. A primeira refere-se não tanto ao poder desse conjunto de tecnologias, mas, sobretudo, a sua autonomia.

Nick Bostrom, professor de filosofia em Oxford (Inglaterra) e um dos expoentes do transumanismo, publicou em 2014 o livro Superintelligence. Paths, Dangers, Strategies (Oxford University Press; superinteligência – caminhos, perigos e estratégias), que se tornou best-seller nos Estados Unidos. Na obra, afirma que a superinteligência “é, possivelmente, o mais importante e intimidador desafio que a humanidade jamais enfrentou”.

Bostrom compara nosso uso da inteligência artificial ao que faz uma criança brincando com uma bomba. O que está em jogo, de acordo com ele, muito mais que uma explosão, é nossa capacidade de manter a própria condição humana.

Essa preocupação já estava presente entre os pioneiros da inteligência artificial, nos anos 1950. Eles haviam percebido que as máquinas poderiam fazer muito mais do que simplesmente pensar numericamente. Eram (e, de fato, tornaram-se cada vez mais) capazes de deduzir e de inventar provas lógicas.

Atualmente, elas vão bem além. Podem aprender, e não só a partir daquilo que nós lhes ensinamos. Esse aprendizado também se baseia no rastreamento das informações que circulam nos meios digitais, uma imensidão de dados interpretada por meio de algoritmos cada vez mais complexos e opacos.

É por causa desse rastreamento que você, após escrever a um amigo dizendo que pretende ir a Santiago, passa a receber mensagens publicitárias sobre passagens de avião e hospedagem no Chile.

O avanço exponencial e combinatório do poder computacional difundido nos mais variados tipos de objeto não amplia só a magnitude das informações coletadas. Amplia também, e sobretudo, a capacidade dos algoritmos de analisar e interpretar esses dados.

Sua geladeira saberá que você está sem leite. Sua máquina de lavar dirá qual o momento de menor consumo de energia no sistema ao qual você está ligado. A temperatura dos ambientes poderá ser regulada em função da presença ou da ausência de pessoas em seu interior e à distância.

Já existem técnicas que permitem circunscrever a aplicação de fertilizantes e agrotóxicos a necessidades específicas de cada lote da unidade produtiva, por meio da interpretação de informações captadas por drones e decodificadas por poderosos algoritmos. Baterias de celulares serão recarregadas por sinais de rádio, via wi-fi.

Internet da energia

Está emergindo uma internet da energia, que monitora o que os domicílios, as fábricas, os escritórios e as fazendas produzem a partir do Sol, dos ventos e da biomassa, distribuindo essa energia conforme as necessidades do conjunto dos usuários. Quem produzir mais energia do que consome tem crédito; quem produzir menos paga. São as chamadas “redes inteligentes”, que compatibilizam noções que o século 20 sempre considerou antagônicas: descentralização e eficiência.

As virtudes da internet das coisas, o fato de que cada um dos bilhões de objetos de nosso cotidiano vai sendo dotado de um protocolo de internet que o identifica e faz dele uma fonte de informação, a cognificação generalizada do mundo material, isso também se estende às pessoas. É o que especialistas batizaram de computação afetiva.

A Apple, no início de 2016, comprou a Emotient, empresa líder em reconhecimento facial e que tem a ambição de detectar nossos estados emocionais. É a internet das emoções. Você está triste? O que posso fazer para que você melhore seu estado de ânimo?

Alguns dos estudiosos do tema sustentam que nós somos a última geração mais inteligente que as máquinas.

Essa espécie de triunfo da inteligência humana sobre ela mesma se apoia naquilo que o historiador Yuval Noah Harari, em seu recém-publicado Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã (Companhia das Letras), chama de o grande desacoplamento: “A inteligência está se desacoplando da consciência”.

Até há pouco, apenas seres conscientes “podiam realizar tarefas que exigissem alto grau de inteligência, como jogar xadrez, dirigir automóveis, diagnosticar doenças ou identificar terroristas”.

Cognição sem corpo

Já temos, porém, e teremos cada vez mais, uma inteligência não apenas sem corpo como também desprovida de emoções e sentido social e, no entanto, capaz de realizar tarefas complexas com mais eficiência que os humanos.

Gerd Leonhard, empreendedor e pesquisador, vai além no livro Technology vs. Humanity: The Coming Clash Between Man and Machine (Fast Future; tecnologia x humanidade: o embate vindouro entre homem e máquina), publicado há alguns meses. Ele sustenta que a inteligência artificial representa uma dissociação entre nossa capacidade de interferir no mundo e as bases éticas dessa intervenção.

A maior ameaça ligada à inteligência artificial deriva do fato de que as máquinas conseguem mimetizar nossos padrões de comportamento ético, mas, por definição, não podem e jamais poderão se dotar de consciência ética. A tecnologia é um meio para atingir fins que só podem estar fora dela.

Se máquinas dotadas de inteligência artificial ampliam seu poder de gestão e de intervenção na sociedade e nos indivíduos, há o risco de que elas próprias definam as finalidades de suas ações.

Assim, nossa condição humana passaria a depender cada vez mais de dispositivos com aptidão para despertar em nós sentimentos que nos definem, como nossa felicidade, nosso sentido de pertencimento e até nossa libido.

Leonhard propõe uma espécie de agência para proteger os seres humanos, um Conselho Global de Ética Digital. Não se trata de esforço (vão) para deter a expansão das tecnologias digitais, mas sim para garantir que elas não comprometam aquilo que nos faz humanos.

Um exemplo? Nossa capacidade de desenvolver atividades úteis para os outros, de fortalecer nossa interação e, portanto, a própria coesão social. Em outras palavras, nosso trabalho.

Desemprego

É justamente aí que entra a segunda grande ameaça representada pela inteligência artificial.
Os mercados de trabalho estão sofrendo mudanças que respondem, em grande parte, pela espantosa reconcentração da riqueza nos países desenvolvidos, em particular nos Estados Unidos.

Até pouco tempo atrás, considerava-se que apenas trabalhos rotineiros e de baixa qualificação seriam deslocados pelo avanço da computação. A inteligência artificial, porém, derrubou essa barreira protetora.
Num escritório de advocacia, por exemplo, as máquinas são muito mais eficientes na pesquisa de julgamentos passados e de artigos de lei que podem ajudar na argumentação de um caso específico. Na medicina, a mesma ideia se aplica à interpretação de chapas radiológicas. A preciosa sabedoria dos taxistas não chega aos pés do que um dispositivo inteligente é capaz de saber.

Claro que a revolução digital também cria empregos, sobretudo na interação entre homens e máquinas. Mas ela o faz em volume menor que a Revolução Industrial, que, há dois séculos, começou a substituir as ocupações agrícolas.

Não é que o trabalho vá subitamente desaparecer, como atesta a situação de quase pleno emprego nos Estados Unidos. O mercado de trabalho, contudo, vai consolidando um padrão polarizado. A minoria dos detentores de conhecimentos apropriados à era digital consegue ganhos de renda, enquanto a grande massa dos assalariados aproxima-se da pobreza e, sobretudo, da irrelevância.

A capacidade de aprendizagem das máquinas e a multiplicação dos robôs torna cada vez mais fácil substituir o trabalho humano.

Atualmente, já se pode robotizar quase inteiramente o trabalho nas cadeias de fast-food, com as vantagens de maior padronização do produto, melhor higiene e amortização do investimento em menos de dois anos.

Se alguém imagina que isso se limita aos países desenvolvidos, vale lembrar que a China já é o maior mercado consumidor de robôs do mundo — e vai se tornando também o principal produtor.

Desigualdade

Carl Frey e Michael Osborne dirigem o Programa de Tecnologia e Emprego da prestigiosa Oxford Martin School, no Reino Unido. Seus trabalhos mostram que o ritmo dessas metamorfoses se acelera, que a lista de setores por elas atingidos se amplia e que, diferentemente das inovações típicas da era industrial, os benefícios das mudanças tecnológicas não são, nem de longe, amplamente distribuídos.

Levou 119 anos para que o fuso industrial, uma vez inventado, se tornasse padrão na tecelagem. A internet difundiu-se em menos de uma década, e os objetos conectados em rede, que já eram 13 bilhões em 2013, totalizarão nada menos que 500 bilhões em 2030.

As consequências sobre os empregos serão devastadoras, mostram Frey e Osborne. Estão em risco 47% dos postos de trabalho nos EUA, 57% na média dos países, desenvolvidos, da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), 69% na Índia, 77% na China e 85% na Etiópia. A destruição tende a ser maior onde a estrutura ocupacional é mais distante da economia do conhecimento.

Tais preocupações não se confinam ao universo dos que desconfiam da tecnologia. Elas são hoje expressas por alguns dos mais destacados protagonistas contemporâneos da cultura digital.

Em 2015, o físico Stephen Hawkin e os empresários Elon Musk (criador da Tesla e um dos mais reconhecidos inovadores do mundo) e Bill Gates publicaram documento com forte alerta sobre as ameaças trazidas pelo avanço da inteligência artificial. A principal delas está na perspectiva de drástica redução de postos de trabalho.

Em fevereiro deste ano, Gates sugeriu que os proprietários de robôs deveriam pagar um imposto que serviria ao treinamento e à reinserção dos trabalhadores deslocados pela inteligência artificial.

Compartilhamento

A terceira grande ameaça representada pelo avanço da inteligência artificial refere-se à economia do compartilhamento.

Em 2010, Rachel Botsman e Roo Rogers publicaram um livro sobre a ascensão do consumo colaborativo. Contavam, encantados, a história dos jovens que tiveram a ideia de hospedar em casa pessoas que não encontravam lugar em hotéis durante um congresso de design, em San Francisco, em 2007.

A partir desse episódio, eles criaram um dispositivo digital que resultou no Airbnb. A novidade não era, claro, o colchão de ar e o bed and breakfast [cama e café da manhã], abreviados no nome daquela que se tornou a principal central de reservas de hospedagem no mundo atual.

O fascinante na iniciativa era a possibilidade, aberta pela conectividade generalizada, de que as pessoas colocassem à disposição umas das outras bens e serviços dos quais não necessitavam e que poderiam ser compartilhados.

Os resultados seriam a ampliação da renda de quem oferecia bens para compartilhamento, os preços mais baratos do que os cobrados pelos mercados convencionais e o potencial de economizar recursos materiais, com benefícios crescentes para o meio ambiente.

O segredo estava em conseguir que indivíduos que não se conheciam confiassem uns nos outros devido às referências digitalizadas. Daí o título do livro de Botsman e Rogers: O que É Meu É Seu (Bookman). Como a revolução digital permite a universalização da prática, o resultado seria o aumento generalizado da prosperidade.

A marca distintiva da economia moderna, a propriedade, seria então substituída pelo acesso. Por que possuir um carro se posso pegar carona? Por que comprar um jornal se as notícias estão disponíveis de forma aberta e gratuita na internet?

A era digital parecia prestes a realizar os mais nobres ideais de cooperação social e compartilhamento que os movimentos operários perseguem desde o século 19, sem o risco da centralização e da burocracia que marcaram o socialismo real.

O consultor e futurologista Jeremy Rifkin chega a prever “o eclipse do capitalismo” no livro Sociedade com Custo Marginal Zero: A Internet das Coisas, os Bens Comuns Colaborativos e o Eclipse do Capitalismo (M. Books).

Para Rifkin, o capitalismo será superado não por um tipo de tomada do Palácio de Inverno, ação pela qual os bolcheviques, em 1917, iniciaram a formação da União Soviética, mas pelo triunfo da cooperação social descentralizada, cujo caminho terá sido aberto pela economia digital.

Já Yochai Benkler publicou em 2011 o livro The Penguin and the Leviathan, com o subtítulo “How Cooperation Triumphs over Self-Interest” (Crown Business; o pinguim e o leviatã: como a cooperação supera o autointeresse).

A euforia emancipatória, contudo, teve vida curta. Em pouco tempo, aquilo que aparecia como expressão virtuosa de cooperação direta e descentralizada entre indivíduos autônomos revelou-se um dos mais importantes epicentros da acumulação financeira.

Pior: a ambição de compartilhamento na hospedagem acabou por contribuir para a degradação de cidades como Amsterdã, Barcelona, Berlim, Paris e Nova York.

Concentração

Em vez de dividirem com os outros os espaços não usados, proprietários venderam seus imóveis a companhias interessadas em explorar a locação. Os locais figuravam como bens pessoais, mas pertenciam a empresas.

Por causa disso, várias cidades adotaram legislações para impedir a desfiguração de suas áreas turísticas, como registra o norte-americano Tom Slee em What’s Yours Is Mine: Against the Sharing Economy (OR Books; o que é seu é meu: contra a economia do compartilhamento).

Não importa se alojamento, transporte, serviços de limpeza ou refeições rápidas; Slee mostra que a economia do compartilhamento converte-se sistematicamente em seu contrário. Ou seja, em lugar de distribuir oportunidades, ela vem dando lugar a uma concentração crescente de renda e de poder.

A quarta grande ameaça trazida pela inteligência artificial refere-se à privacidade. Michael Sandel, professor de filosofia política em Harvard, pergunta-se se não é perigoso estarmos nos aproximando de um cotidiano em que a vigilância — de governos, empresas de que compramos, companhias de seguro e empregadores — torna-se cada vez mais intrusiva.

Adeus à privacidade

As companhias de seguro já começam a propor a clientes que vistam dispositivos capazes de acompanhar sua vida cotidiana (exercícios físicos, consumo de álcool e tabaco, alimentação, sono). A partir dos dados coletados pela indumentária, os valores da apólice seriam elevados ou reduzidos. Segundo Sandel, a troca da privacidade pela conveniência levanta questões éticas que deveriam pautar as decisões de empresas e indivíduos. E se um empregador exigir que seu funcionário use o dispositivo?

Mas o pior é que estamos o tempo todo fornecendo o que há de mais precioso no mundo contemporâneo, ou seja, a informação, de forma gratuita e inteiramente involuntária. Em uma fala no TED (conferência sobre tecnologia, entretenimento e design), a jornalista especializada em tecnologia Marta Peirano mostra que, sem que saibamos, nossos celulares e todos os dispositivos conectados de que nos servimos estão produzindo informações processadas por algoritmos cada vez mais poderosos.

Essas informações não são só utilizadas por serviços de inteligência mas também por empresas que nos oferecem pontos por compras e que conhecem melhor nossos hábitos que nossos familiares. 

Diferentemente das empresas telefônicas, a maneira como esses dados são usados não é objeto de regulação estatal.

A privacidade, muito mais que um instrumento, é um valor. A ideia tão frequente de que o cidadão honesto nada tem a temer com a transmissão à rede dos dados de sua vida pessoal passa por cima justamente de um dos mais importantes fundamentos éticos da vida contemporânea, que é o poder do indivíduo sobre sua vida pessoal.

Não foi à toa que, em fevereiro, a Alemanha proibiu a comercialização da boneca Cayla, que ouvia e dialogava com as crianças. Enquanto fazia isso, ela armazenava as informações do diálogo — e o fazia sem o conhecimento dos pais. A preocupação das autoridades alemãs não impediu que o produto continuasse à venda nos EUA.

Discussão ética

Em suma, nunca foram tão poderosos os meios técnicos para melhorar a saúde humana, permitir que as pessoas levem adiante trabalhos interessantes, favorecer a cooperação social e ampliar a soberania dos indivíduos sobre suas vidas e suas decisões. Ao mesmo tempo, nunca foram tão avassaladoras as ameaças que emergem da concentração de riqueza e de poder ligada a esses meios técnicos.

É fundamental que se amplie a discussão pública (sobretudo a de natureza ética) sobre esses temas, pois é daí que virão políticas e iniciativas empresariais e cidadãs que poderão colocar a inteligência artificial a serviço do florescimento da espécie humana.
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Ricardo Abramovay, 63, professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP, é autor de Muito Além da Economia Verde (Planeta Sustentável).
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Fonte: http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=2120

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Ricardo Noblat: Primeiramente, fora Lula!

Lula viveu de obséquios. Vive. O dinheiro não o atrai. A rotina da política, tampouco. O conforto e as facilidades, sim. Terceiriza a missão de obtê-las

Quem foi Marcelo Odebrecht? O mandachuva do país durante o reinado do PT? O chefe de uma sofisticada organização criminosa? Ou o “bobo da corte” afinal preso e forçado a delatar?

E Lula, quem foi? O primeiro operário a chegar ao poder? O maior líder popular da História? Ou o presidente que fez da corrupção uma política de Estado?
Marcelo será esquecido. Luiz Inácio Odebrecht da Silva, jamais.
Em dezembro de 1989, poucos dias após a eleição do presidente Fernando Collor de Melo, o deputado Ulysses Guimarães (PMDB-SP), ex-condestável do novo regime, almoçava no restaurante Piantella, em Brasília, quando entrou a cantora Fafá de Belém, amiga de Lula. “Como vai Lula?”, perguntou Ulysses. Fafá passara ao lado dele o domingo da sua derrota para Collor.
E contou: “Lula ficou muito chateado, mas começamos a beber e a comer, os meninos foram para a piscina e ele acabou relaxando”. Ulysses quis saber: “Tem piscina na casa de Lula?” Fafá explicou: “Tem, mas a casa é de um compadre dele, o advogado Roberto Teixeira”. Ulysses calou-se. Depois comentou com amigos: “O mal de Lula é que ele parece gostar de viver de obséquios”. Na mosca!
Lula viveu de obséquios. Vive. O dinheiro não o atrai. A rotina da política, tampouco. O conforto e as facilidades, sim. Terceiriza a missão de obtê-las.
O poder sempre o fascinou. E para conquistá-lo e mantê-lo, mandou às favas todos os escrúpulos que não tinha.
Os que o cercam em nada se surpreenderam com a figura que emerge das delações dos executivos da Odebrecht.
É um pragmático, oportunista, que se revelou um farsante. Emilio, o patriarca dos Odebrecht, decifrou Lula muito antes de ele subir a rampa do Palácio do Planalto. Conquistou-o com conselhos e dinheiro.
Perdeu nas vezes em que ele foi derrotado. Recuperou o que perdeu e saiu com os bolsos estufados quando Lula e Dilma governaram. Chamava-o de “chefe”. Emílio era o chefe.
Nos oito anos da presidência do ex-operário que detestava macacão e sonhava com gravatas caras, o país conviveu com o Lula que pensava conhecer e, sem o saber, também com Luiz Inácio Odebrecht da Silva, só conhecido por Emílio e alguns poucos.
“Cuide do meu filho”, um dia Lula pediu a Emílio. Que retrucou: “Cuide do meu também”. Emílio cuidou de Fábio. Lula, de Marcelo.
De Lula cuidaram Emílio e Marcelo, reservando-lhe uma montanha de dinheiro em conta especial para satisfazer-lhe todas as vontades. Lula retribuiu com decisões governamentais que fizeram a Odebrecht crescer muito mais do que a Microsoft em certo período.
A Odebrecht pagou a Lula, e Lula pagou a Odebrecht, com a mesma moeda – recursos públicos. Quem perdeu com isso?
A Odebrecht ganhou mais dinheiro à custa de Lula do que ele à custa dela, mas Lula foi mais esperto. Criou seu próprio banco, administrado pela empreiteira. E quando precisava sacar, outros o faziam em seu nome.
Imagina não ter deixado impressões digitais nas negociatas em que se meteu. A polícia já identificou muitas. E outras serão identificadas antes do seu depoimento em Curitiba.
Corrupção mata. Mata sonhos, esperanças, alucinações. Mata o passado, o presente e compromete o futuro. Mata também de morte morrida à falta de saneamento, hospitais, escolas, segurança pública. A impunidade mata tanto ou mais.
A hora e a vez são da Justiça. E ela será julgada pelo que fizer ou deixar de fazer.

Ricardo Noblat é jornalista

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Fonte: http://noblat.oglobo.globo.com/meus-textos/noticia/2017/04/primeiramente-fora-lula.html

quinta-feira, 13 de abril de 2017

Alberto Aggio: Uma esquerda da inventare

A do petismo e aliados está velha, ultrapassada, sem conexão com o que sustenta a democracia
Conexa às diatribes de Lula, parte da esquerda brasileira, em especial a que ainda lhe empresta apoio, parece viver como nefelibata, justificando e reagindo a qualquer denúncia, por menor que seja. Se antes defendia, sem pejo, “os seus”, qualificando-os indevidamente como “heróis do povo brasileiro”, hoje busca um álibi ao culpabilizar indiscriminadamente o Poder Judiciário pela crise que envolve a República. Mais grave ainda: decidiu afrontar a chamada “república de Curitiba”, acusando-a de destruir os “campeões nacionais” da era petista.

Cega como está, essa parcela da esquerda dificilmente encontrará os termos de reconciliação com a realidade. A cada passo perde credibilidade como ator político, o que é negativo sob todos os aspectos. Certamente um país com o grau de desigualdade e de atraso como o Brasil necessita de uma esquerda vigorosa e moderna que seja um componente essencial das relações de força no enfrentamento de questões que perenizaram entre nós um “mau Estado e um mau mercado”. Mas nos referíamos aqui a uma “outra” esquerda, democrática e republicana, de perfil majoritário, e não testemunhal, capaz de superar a deplorável identificação que o PT se encarregou de estabelecer entre esquerda e corrupção.
Uma esquerda da inventare, como dizem os italianos, portadora de um vivo propósito de rever seus conceitos, suas representações, sua prática e suas linguagens, superar anacronismos e passadismos, e assimilar definitivamente que o caminho, assim como o destino da sua política, se estabelece no interior e por meio das instituições democráticas. Dirigentes petistas, quando estavam no governo, falavam e agora, na oposição, continuam falando que fazem política dentro das instituições “deles”, o que configura um equívoco de fundo pelo qual se pode definir o petismo e seus aliados como uma esquerda velha e ultrapassada, sem conexão com o que sustenta a democracia brasileira.
No plano das ideias, há historicamente uma identificação insofismável entre esquerda e socialismo, embora se deva reconhecer que nem toda esquerda postulou o socialismo. Isso porque esquerda é um conceito situacional e dependente das relações de força que envolvem a direita e o centro. Essas três porções da geografia política assumiram na História um sem-número de configurações, redesenhando sua identidade.
O socialismo foi um programa de mudança social e um movimento político que mobilizou milhões de pessoas no decorrer dos séculos 19 e 20. Nasceu com o capitalismo industrial e teve suas origens nos estratos mais profundos da sociedade europeia. O socialismo combinou uma concepção de liberdade nascida do Iluminismo com as demandas por igualdade nascidas do mundo do trabalhador pobre do século 19. Dividiu-se entre o comunismo de matriz soviética e a social-democracia do Ocidente europeu. O primeiro feneceu e o segundo segue vivo, a despeito da crise atual.
As três últimas décadas do século 20 produziram mudanças na estrutura do mundo que fizeram ruir as bases de referência do socialismo. Como resultado dessas mudanças tecnológicas e comunicacionais, a estrutura produtiva foi alterada de maneira drástica, reduzindo a necessidade de mão de obra. A classe operária começou a minguar e perder os atributos de sujeito universal e emancipador que lhe atribuíam os teóricos do socialismo. Num cenário pós-fordista, diminui a autoorganização coletiva, a vida associativa, bem como as diversas dimensões que davam sustentação ética à cultura política do socialismo. No final do século 20 e início do século 21 a esquerda perdeu o seu referencial mais potente.
No final do século 20, a revolução também agonizou como o lugar simbólico e o eixo estratégico da esquerda. Já na década de 1930 se suspeitava que a contraposição entre revolucionários e reformistas não passava de um equívoco. Imaginar que o socialismo deveria superar o capitalismo por meio da intensificação de um processo de enfrentamento de classes foi um erro histórico que causou impotência e derrota. Setenta anos depois, esse entendimento se esgotou e hoje não é mais do que uma retórica inercial.
Ultrapassado o mito da revolução, uma esquerda integrada aos sistemas democráticos parece ser a única representação positiva que fica dessa trajetória secular. Apenas como parte desses sistemas, e em luta para renová-los, é que a esquerda se pode apresentar como uma força política transformadora fundada na extensão da igualdade de oportunidades, na valorização das responsabilidades coletivas e numa concepção solidária e fraterna da vida. Uma esquerda que, como enfatizou Walter Veltroni em discurso recente, possa abrir-se à contaminação, à curiosidade, ao espírito crítico e à disponibilidade de falar a língua do outro. Em suma, uma esquerda reformista que tenha uma concepção não imóvel da sua identidade e sustente seus valores na justiça social, na defesa do valor do trabalho, na renúncia às concepções totalitárias da História e da vida, na defesa dos mais débeis, bem como na refutação do mito do sucesso individual, passando a pensar o individual e o social de maneira integrada, e não antagônica.
Não se trata de relançar a ideia de utopia, uma noção mais condizente com o arsenal linguístico do pensamento revolucionário. Aliás, não é verdade que a social-democracia esteja em crise porque se afastou da utopia. Suas perdas eleitorais resultam da incapacidade de prover o que antes provinha. Agregar um adjetivo à noção de utopia não vai resolver o problema.
Se a esquerda do século 21 quiser ter potencialidade, não poderá ser mais a esquerda que protagonizou o século 20. Haverá de ser uma “outra esquerda”, à qual importa menos uma perspectiva finalística e mais o enfrentamento das questões concretas da vida da população, tornando-as seus objetivos permanentes.
*Alberto Aggio é historiador e professor titular da Unesp

Fonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,uma-esquerda-da-inventare,70001736863?from=whatsapp

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Alberto Bombig: O teatro do PT seria engraçado, se não fosse triste e trágico

Enquanto o PT dizia na televisão ter sido quem mais combateu a corrupção, a lista de Fachin escancarava a relação de Lula e seus demais dirigentes com os delatores da Odebrecht

No dia em que o Brasil conheceu o teor da lista do ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no Supremo, o PT foi à televisão e ao rádio, em cadeia nacional, dizer que as gestões do partido na Presidência foram as que “mais combateram a corrupção” e que há uma “perseguição” feita com base em “mentiras” para impedir que Lula volte a ser presidente. Seria até engraçado, se não fosse trágico. Seria até irônico, se não fosse deprimente.



Lula foi delatado pelo empreiteiro Marcelo Odebrecht e seus subordinados, com todas as letras e com a maior clareza possível. Lula foi alvo de seis petições de Fachin enviadas à primeira instância (ele não tem mais foro privilegiado). Segundo os delatores, o sítio que ele frequentava em Atibaia(SP) recebeu obras, um irmão ganhou mesada, MPs foram negociadas para beneficiar o grupo Odebrecht e um soldado petista fez saques em dinheiro. Ufa!

Também são citados nos documentos liberados por Fachin petistas que ocuparam cargos de comando em praticamente todas as esferas da máquina federal nas gestões petistas. Não vou gastar espaço precioso aqui para falar do financiamento das campanhas eleitorais.

Nos gêneros clássicos do teatro, a farsa era aquele que se destinava a divertir o público com personagens caricatos e burlescos. Enquanto insistir em negar seus erros e retorcer a realidade, o PT permanecerá como uma bigorna de ferro amarrada às pernas da esquerda brasileira. Vai dizer o que agora? Que apenas o que os delatores disseram sobre o PSDB é verdade?

O primeiro impacto da lista de Fachin é o de fornecer argumentos retóricos aos que tentam igualar a tudo e a todos, em todos os partidos e esferas de poder. É nesse mar que o PT vai tentar nadar a partir de para se defender na Lava Jato. Porém, a bigorna da mentira continuará amarrada a ele.

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Fonte: http://gilvanmelo.blogspot.com.br/2017/04/o-teatro-do-pt-seria-engracado-se-nao.html

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Luiz Carlos Azedo: Quem perdeu?

Nas entrelinhas
O governo e a oposição, o Congresso e os partidos políticos, talvez boa parte dos governos estaduais, caíram no descrédito popular

A geração de políticos formada na Segunda República (1945-1964) foi derrotada pela radicalização que a Guerra Fria fomentou numa sucessão de crises antecedentes ao golpe militar de 1964, que depôs o presidente João Goulart. As principais ocorreram em 1954 (suicídio de Getúlio Vargas), 1956 (posse de Juscelino Kubitschek) e 1961(renúncia de Jânio Quadros). Sucumbiram no processo quase todos os protagonistas, com exceção de Leonel Brizola, o incendiário, que após a anistia elegeu-se governador do Rio de Janeiro, em 1982, e Tancredo Neves, o bombeiro, que elegeu-se presidente em 1985, mas não chegou a tomar posse. José Sarney, o vice que assumiu a Presidência da República, e Ulysses Guimarães, o grande líder da oposição que presidiu a Constituinte eleita em 1986, eram políticos coadjuvantes no pré-64.
Do legado da geração de políticos que emergiu do regime militar, quase tudo foi volatilizado pela crise atual. Individualmente, é difícil reconhecer o próprio fracasso, mas, diante das revelações da Operação Lava-Jato e do buraco em que nos metemos, fica evidente o fracasso de uma geração. O governo e a oposição, o Congresso e os partidos políticos, talvez boa parte dos governos estaduais, caíram no descrédito popular. Como negar esse fracasso a 13 milhões de desempregados, outros tantos que vivem da economia informal, aos milhões de jovens sem perspectiva de emprego futuro — boa parte já fora da escola. Pela primeira vez na história, uma geração entregará o país em condições piores do que o recebeu.
Não é à toa a situação de esgarçamento social existente, que favorece a radicalização política. A Guerra Fria já não existe, mas o clima é de guerra quente por causa da crise na Síria. O país perdeu o consenso em torno de algumas ideias que balizaram a transição à democracia. Durante a Constituinte, havia grandes consensos em relação à política externa, ao modelo industrial, ao acesso universal à saúde e à educação, à legislação trabalhista, ao regime tributário, ao sistema partidário, ao sistema eleitoral, às questões agrária e indígena etc.
As posições extremas em relação a tudo isso estavam isoladas.Trinta anos depois, não há mais consenso sobre nada. O nosso Estado de direito democrático sustenta-se no que está escrito na Constituição de 1988 e não no amplo entendimento sobre a realidade social, para onde e como o país deve caminhar. Os indicadores de violência são um fator perturbador de que a convivência social é muito frágil, basta tirar a polícia da rua — ou dos estádios — para emergir a barbárie.
Quando se ouve a voz da maioria dos políticos, a sensação é de que estão repetindo os mesmos discursos há 30 anos. O que predomina no debate político são visões ideológicas, incapazes de abrir caminhos para o enfrentamento da crise atual, porque refletem de forma distorcida as reais contradições da sociedade. Ou, simplesmente, são carapaças políticas nas quais se escondem, sem acreditar nas próprias palavras. É impossível construir novos consensos quando não há diálogo e abertura para dar vazão ao novo.
O que fazer?
Um dos efeitos colaterais da reeleição de presidentes, governadores e prefeitos foi empurrar a fila para trás. Quando se compara nossas lideranças com as de outras nações — basta assistir aos telejornais —, é flagrante a diferença de gerações. Não se formou ainda uma nova geração de líderes. Nossos principais políticos são os mesmos desde a Constituinte, com raras exceções. E não foram capaze até agora de construir novos consensos em torno de ideias básicas que promovam o crescimento, combatam os privilégios, reduzam as desigualdades, enfrentem seculares iniquidades sociais, como o analfabetismo, a falta de moradia e a discriminação racial.
Essa dificuldade é maior porque muitas das ideias da nossa elite política estão sendo atropeladas pela revolução tecnológica e a economia do conhecimento. O mais dramático nesse aspecto é que a nova geração de políticos está numa gestação de risco, muitos dos quais já condenados às ideias anacrônicas. Assim como ficamos de fora das três revoluções industriais, fomos excluídos da quarta. O lugar cativo do Brasil na nova divisão internacional do trabalho é exportar alimentos in natura e granulados de minério. Se quisermos realmente ser mais do que isso, utilizando o potencial que temos, o país terá que se reinventar sob vários aspectos, a começar pelo Estado. É aí que está instalado o maior conflito.
O Estado no Brasil é anterior à nação. Foi o guardião da escravatura até 1888. A partir de 1930, transformou-se na alavanca da industrialização. A forma mais rápida e lucrativa de reprodução e concentração de capital no Brasil é a transferência de renda do Estado para o setor privado, desde sempre. Sua reforma pressupõe a reinvenção do capitalismo no país. Esse talvez seja o grande busílis do novo consenso a ser construído. Já existe uma opinião pública majoritariamente engajada na ideia de que os grandes interesses privados precisam ser apartados dos mecanismos de decisão do Estado, mas como traduzir isso na política? Sem os políticos e o Congresso, é impossível. (Correio Braziliense)
Luiz Carlos Azedo é jornalista